As sociedades compostas exclusivamente por médicos têm direito ao enquadramento em regime tributário favorecido para recolhimento do Imposto sobre Serviços (ISS).
Por meio de tal regime, denominado Regime das Sociedades Uniprofissionais (Regime das SUP), a sociedade que contenha apenas médicos pode recolher o ISS por meio de valor fixo per capita, situação que representa economia, em relação ao regime normal de incidência do ISS na alíquota de 2 a 5% sobre o faturamento da sociedade.
A situação é disciplinada por leis ou Decretos Municipais, porém qualquer destas normas precisa estar em consonância com o Código Tributário Nacional e com as normas gerais estabelecidas pela União, por meio de leis federais.
Essa advertência consubstancia um ponto nodal sobre o qual devem ser construídas as premissas normativas para legisladores municipais e comportamentais dos médicos integrantes de sociedades uniprofissionais.
No entanto, de modo lamentável, muitos municípios têm adotado posturas ilegais, que contrariam os parâmetros da legislação federal e têm promovido o desenquadramento de sociedades até então inseridas no Regime das SUP.
Este desenquadramento é acompanhado da lavratura de autos de infração e imposição de multa, que consubstanciam pesados valores e cobranças retroativas de ISS referentes aos cinco anos anteriores.
Sem dúvida alguma, essas autuações têm se mostrado flagrantemente ilegais e contrárias à Constituição Federal.
Para lutar contra essa situação de injustiça e de ilegalidade, há importantes teses de defesa para as sociedades médicas, as quais têm recebido acolhida pelo Poder Judiciário, permitindo o retorno ao regime das SUP e anulando os autos de infração e imposição de multa erroneamente lavrados pela autoridade fiscal.
Via de regra, as sociedades que têm sido desenquadradas apresentam um perfil, de uma sociedade que não é calcada em estrutura empresarial, mas sim na mera justaposição de médicos, que mantêm carteiras autônomas de clientes e não comercializam insumos farmacológicos, tampouco exames, nem empregam pessoas de diferentes ramos, caracterizando uma sociedade uniprofissional que faz jus ao enquadramento em regime diferenciado para fins de recolhimento do imposto sobre serviços (ISS).
São sociedades em que não há organização de fatores de produção a caracterizar uma sociedade empresária, mas apenas o fornecimento individualizado de consultas na área de medicina por profissionais ultraqualificados que são buscados em virtude desta formação sólida.
Nesse sentido, leciona André Luiz Santa Cruz Ramos[1] que:
“Assim, as sociedades podem ser de duas categorias: a) sociedades simples, que são aquelas que exploram atividade econômica não empresarial, como as sociedades uniprofissionais estudadas no capítulo II; b) sociedades empresárias, que exploram atividade empresarial, ou seja, exercem profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (art. 966 do Código Civil). (…) Portanto, a grande diferença entre as sociedades simples e as sociedades empresárias não está no fato de estas possuírem finalidade lucrativa, porque aquelas também podem ostentar essa característica. O traço distintivo entre ambas é mesmo o objeto social: a sociedade empresária tem por objeto o exercício de empresa (atividade econômica organizada de prestação ou circulação de bens ou serviços); a sociedade simples tem por objeto o exercício de atividade econômica não empresarial”.
Sobre o tema, arremata Silvio Venosa[2], estabelecendo a clara distinção entre a exploração da atividade intelectual pura e sua dissociação da atividade intelectual, que é apenas um elemento da empresa e exemplificando:
“(..) mediante a reunião dos quatro fatores de produção, quais sejam, capital, mão de obra, tecnologia e insumos, produz e coloca em circulação bens ou serviços”. (…). Explorar uma atividade econômica de forma organizada, no sentido de produzir riquezas, é um requisito necessário para adquirir a condição de empresário. (…). Os profissionais dessa classe adquirem a condição de empresário só quando desenvolvem uma atividade ulterior, distinta da intelectual ou artística, considerada em si mesmo empresária. É o caso, por exemplo, do professor que possui instituição de ensino privada ou de médico que administra e é titular de um hospital, pois, nesse caso, ambos tornam-se empresários, pois exploram uma atividade administração da instituição de ensino e da clínica definidas em si mesmas com empresa.”
Entretanto, por ocasião de auditorias fiscais, as Prefeituras têm desenquadrado as sociedades médicas do regime de tributação do ISS por valor fixo, sob o equivocado argumento de que as contribuintes, por estarem constituídas como uma sociedade limitada, não fariam jus ao enquadramento. E ainda estabelecem efeitos retroativos para o desenquadramento, calculando a suposta dívida com utilização de índices de correção monetária ilegais (IPCA).
É certo que não se sustenta o desenquadramento do regime de recolhimento do ISS por sociedades uniprofissionais médicas, na medida em que, via de regra, não se está diante de uma sociedade empresária, ainda que constituída sob a forma limitada, mas sim de uma sociedade calcada na figura dos sócios, com responsabilização pessoal destes e que desenvolve trabalho intelectual de modo personalizado.
Assim, irrelevante a forma societária sob o modelo de limitada, na medida em que a responsabilidade dos sócios é pessoal e ilimitada.
A tese dos Municípios é, frequentemente, equivocada por distorcer os ditames do Decreto-Lei 406/1968, que apenas exige responsabilidade pessoal dos sócios, o que ocorre no caso de sociedades médicas, devido às disposições do Código de Ética Médica.
Neste sentido, cumpre salientar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que, nos julgados mais atuais, reconhece o direito ao enquadramento no regime das SUP, ainda que a sociedade esteja constituída sobre a forma de limitada:
“Ressalvados os modelos puramente empresariais, como ocorre com as espécies de sociedades anônimas e comandita por ações, não é relevante para a concessão do regime tributário diferenciado a espécie empresarial adotada pela pessoa jurídica, pois como no caso concreto ora analisado, pode haver sociedades limitadas que não são empresárias, conforme preveem expressamente os artigos 982 e 983 do Código Civil“. (grifos nossos)
STJ, EAREsp. n. 31.084/MS, j. 24/03/2021, redator para o acórdão o Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES.
Por seu turno, colaciona-se julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Apelação. Ação anulatória de débito fiscal. Município de São Paulo. Autos de Infração. ISS dos exercícios de 2014 a 2017. Desenquadramento do regime especial de recolhimento por adoção do modelo de responsabilidade limitada. Alegação da sociedade de que atende aos requisitos legais exigidos para o gozo do referido regime. Sentença que julgou procedente o pedido. Pretensão à reforma. Desacolhimento. Tipo societário adotado que, por si só, não é suficiente para impedir a tributação privilegiada. Precedentes do STJ e desta Corte. Caso concreto em que a sociedade apelante sempre recolheu o imposto na forma fixa. Mudança no enquadramento da sociedade que constitui modificação de critério jurídico anteriormente adotado pelo fisco e que, por isso, não pode alcançar fatos geradores pretéritos. Inteligência do artigo 146 do CTN. Observância dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé. Sentença mantida. Recurso não Provido”. (grifos nossos)
TJSP, Apelação Cível n. 1034506-25.2020.8.26.0053, j. 18/01/2022, rel. Desembargador RICARDO CHIMENTI
No entanto, as Prefeituras Municipais têm desrespeitado o princípio e, mudando seu próprio entendimento, efetuando desenquadramentos com efeitos tributários pretéritos em desfavor das sociedades médicas.
Diante da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo, fica claro que o desenquadramento do regime da SUP é equivocado e que os autos de infração são ilegais.
A sociedade médica, ainda que constituída sob a forma de sociedade limitada e que preencha os requisitos para enquadramento no regime de tributação das SUP, com responsabilidade pessoal dos médicos, conforme exige o Decreto-Lei 403/68 e sem estruturação de entidade empresarial, tem direito ao reenquadramento ao regime de tributação do ISS como sociedade uniprofissional.
Assim se deve, pois na medida em que os serviços prestados são apenas na área de consultas e as atividades clínicas são realizadas apenas por médicos, sem participação ou emprego de profissionais de diferentes áreas, inexiste organização de fatores de produção típica de sociedades empresárias, ainda que exista recepcionista ou auxiliar para organizar a agenda.
De certo que, a sociedade, ainda que limitada, preenche os requisitos necessários ao enquadramento nas hipóteses do art. 9º § 3º do Decreto-Lei 403/68.
Veja-se:
Consoante o art. 9º § 3º do Decreto-Lei 403/68, para que uma sociedade uniprofissional faça jus ao regime diferenciado de tributação do Imposto Sobre Serviços (ISS), ela não precisa estar organizada como sociedade simples, desde que a responsabilidade dos sócios seja pessoal. Assim, não importa que uma sociedade uniprofissional esteja constituída como sociedade simples ou como sociedade limitada, se os profissionais participantes da sociedade responderem pessoalmente, haverá o direito ao regime diferenciado de tributação.
“§ 3° Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.”
Especificamente, a dicção normativa da Lei Municipal 13.701/2003 de São Paulo:
“Art. 15. § 1º As sociedades de que trata o inciso II do “caput” deste artigo são aquelas cujos profissionais (sócios, empregados ou não) são habilitados ao exercício da mesma atividade e prestam serviços de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica.”
Ademais, os profissionais integrantes da sociedade médica respondem de modo pessoal e ilimitadamente, por força de disposição expressa de estatuto normativo, qual seja o Código de Ética Médica, que em seu art. 1º, parágrafo único prevê a responsabilidade pessoal do médico.
“Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.”
No sentido da tese supramencionada, o entendimento jurisprudencial consolidado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, representada pelo julgamento do REsp 1645813 / SP:
A jurisprudência do STJ firmou o entendimento de que as sociedades de médicos que não possuem natureza mercantil e são necessariamente uniprofissionais gozam do tratamento tributário diferenciado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei 406/1968, recolhendo o ISS não com base no seu faturamento bruto, mas sim no valor fixo anual calculado de acordo com o número de profissionais que as integram.
In casu, o Tribunal a quo consignou que “trata-se de sociedade uniprofissional, porque constituída exclusivamente por dois médicos, devidamente inscritos no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, cuja responsabilidade pessoal pelos serviços prestados é inegável, nos termos da legislação aplicável à profissão médica” (fl. 279, e-STJ).
Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.
Consoante a dicção normativa do art. 146 do Código Tributário Nacional, a modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.
Deste modo, há expressa previsão de Lei Complementar estabelecendo o princípio tributário da irretroatividade do entendimento da autoridade administrativa que seja mais gravoso ao contribuinte, prestigiando-se a boa-fé e o respeito ao ato jurídico perfeito, em consonância à Constituição Federal.
Assim, uma vez lançado o tributo e pago corretamente pelo contribuinte, é vedado que a Autoridade Administrativa proceda à nova interpretação do direito e institua majoração do tributo retroativamente.
Entretanto, a despeito da clareza solar do comando normativo inscrito no art. 146 do Código Tributário Nacional, os Municípios têm aplicado em desfavor das sociedades médicas entendimento retroativo e considerando-as inadimplentes, quando estas cumpriram completamente suas obrigações tributárias no que pertine ao imposto sobre serviços, pagando integralmente o montante do imposto lançado de acordo com o entendimento vigente ao tempo do lançamento: valor fixo anual de ISS para cada profissional sócio da empresa.
Tal maneira de proceder viola frontalmente o disposto no art. 146 do Código Tributário Nacional, atribuindo efeitos retroativos à mudança de entendimento e majorando tributos que haviam sido integralmente pagos pelo contribuinte.
O desembargador Leandro Paulsen[3] destaca a importância do art. 146 do Código Tributário para a segurança jurídica:
“Princípio da proteção à confiança. O art. 146 do CTN positiva, em nível infraconstitucional, a necessidade de proteção da confiança do contribuinte na Administração Tributária, abarcando, de um lado, a impossibilidade de retratação de atos administrativos concretos que implique prejuízo relativamente a situação consolidada à luz de critérios anteriormente adotados e, de outro, a irretroatividade de atos administrativos normativos quando o contribuinte confiou nas normas anteriores”.
Embora a Administração Pública tenha prerrogativas decorrentes do regime de Direito Público, não tem ela a faculdade de desrespeitar a norma do art. 146 do Código Tributário Nacional, a qual impede que alterações supervenientes do entendimento da administração pública a respeito de determinado tributo não possam alcançar situações consolidadas pretéritas, as quais já estavam estabilizadas como um ato jurídico perfeito. Violar a norma prevista na Lei Geral Tributária representaria romper por completo a segurança jurídica.
Neste sentido, além do dispositivo do compêndio tributário, a própria Constituição Federal confere garantias ao cidadão, na medida em que estabelece o respeito ao ato jurídico perfeito.
Essa é uma das maiores conquistas do Estado Democrático de Direito, que prevê o respeito à legislação, às prévias regras do jogo.
Destarte, não pode o Poder Judiciário, constituído pelo Estado Democrático de Direito, conformar-se com tamanha ilegalidade e ausência de boa-fé, razão pela qual deve declarar a ilegalidade da aplicação retroativa ao entendimento administrativo desfavorável ao contribuinte, prestigiando o art. 146 do Código Tributário Nacional.
Rodrigo Lopes dos Santos, Bacharel em Direito pela USP, Mestre em Direito do Estado pela USP e Doutorando em Direito Processual pela USP, é sócio-gerente de Lopes & Giorno Advogados
[1] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. São Paulo: Método, 2016 p. 161/162.
[2] VENOSA, Silvio. Código Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2015, p. 911-912.
[3] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário, Constituição e Código Tributário. 16ª Edição, 2014, Livraria do Advogado Editora, pág. 1162.